quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Lembranças da Mocidade

O templo e eu: histórias de infância e adolescência.
Agora sou realidade. O presente é um presente
Quando quis tecer estas linhas, quis a princípio continuar lembranças de Cosme e Damião na juventude. A Mocidade IEED, no entanto, ocupa no meu baú um capítulo mais amplo do que isso. E precisei expandir.

Como acontece em tantas outras sociedades, a IEED celebra o ingresso em uma nova fase da vida. Na primeira comunhão, somos apresentados aos nossos Mestres e referendamos o compromisso de seguir os seus valores.  

Para avançar à Mocidade IEED, era necessário conhecer as orações do livrinho “Oremos”. Alguns dos meus companheiros já estavam adiantados no estudo. Precisei correr para acompanhar o ritmo. Cheguei lá, mas a Prece a Santidade Wandú ainda não estava tão candente.

A consagração se daria às seis da manhã do dia 31 de maio de 1988. Na noite anterior, eu e mais dois colegas, Fábio e Renato, andávamos numa pequena sala de um lado para outro tentando fixar a prece pendente.

Conseguimos todos. E o novo despertar dos ex-pombinhos foi de uma alegria só. Mas, como Peter Parker ouviu de Tio Bem pouco antes de revirar a cidade como Homem Aranha, poderes trazem responsabilidades. Elas foram chegando lentamente.

Na primeira delas, uma sinestesia marcante de dança e som. O verde irradiava força física ao som de “I wanna dance with somebody”, um hit cantado por Whitney Houston, e a nossa despretensiosa dança. Embora preferisse algo mais clássico, Iluminado Ogum Megê aceitou.

Naquele sábado, uma profecia se cumpriu em meu coração: passei a ver com outros olhos uma das meninas com quem comunguei. Encantei-me com o jeito gracioso com que se expressava a sua dança, e me enamorei dela. Isso durou por alguns meses, até que o pobre do meu ser se partisse. A primeira grande desilusão trazia tristeza, mas também aprendizado.

Ogum poderia ser um capítulo à parte. Quando criança, eu via os Cavaleiros entrarem com aquela roupa romana e sonhava fazer parte daquilo. O sonho virou realidade mais cedo do que eu imaginava.

Certa vez, a convocação pra uma prova de concurso público da Sabesp, para mensageiro, me daria a letra de um dilema: se fosse fazer a prova, não poderia marchar. A contragosto de quem quisesse ouvir, optei pela fidelidade aos Cavaleiros. Após o final da Cerimônia, soube que uma suspeita de fraude fez o exame ser cancelado. Ogum operava no céu a meu favor.

São também inesquecíveis os encontros com a Mocidade do Rio. Eram quase todos cheios de muita camaradagem e alguma estranheza de parte a parte. Um desses eventos, no entanto, foi carregado de uma certa tensão. Marcada pela já ultrapassada rivalidade entre Piratininga e Guanabara.

Em 94, eles vieram passear em São Paulo. Eis que, dentro do ônibus, em atitude de extrema deselegância, um dos moços cariocas puxou uma nada engraçada música que dizia que “praia de paulista é o Rio Tietê”. E os seus conterrâneos, cheios de sem-graça, seguiram o coro. Houve reação, e iniciou-se então um embate sobre qual era a melhor cidade.

As professoras do lado de lá tentaram levar a coisa na brincadeira, e deixaram rolar. Foi o que pareceu – porque era na base do sarro que eles viram a coisa. O lado paulista não gostou nada da descortesia. Revoltados, queriam distância daqueles tão insolentes irmãos. Aparadas as arestas, um novo encontro só aconteceu dois anos depois.

Também num São Jorge experimentei uma estreia: pela primeira vez figurava na banda. Estava ainda incipiente naquele uniforme verde, que lembra um galardão das Forças Armadas. Cheguei com a roupa para dentro da calça, e Jaci me corrigiu: devia deixa-la para fora. Precisava pegar andando o bonde do primeiro ponto que ouvia:

Em seu cavalo branco ele vem montado/Calçado, de botas, sem ser soldado/Vinde, vinde, vinde, nosso Protetor/ Vinde, vinde, vinde, nosso Salvador.

E assim revolucionávamos, participando dos trabalhos por via da música. Num primeiro momento, ainda estávamos crus e não assimilávamos bem os ritmos. Passamos por uma reformulação de conceitos e instrumentos, e a coisa fluiu.

Cada cerimônia possui um ritmo diferente, e isso influencia diretamente no trabalho da Banda. Ogum e Cosme e Damião se desenvolve no Terreiro Sacerdotal, um ambiente aberto e, portanto, mais exigente das vozes. De longe, parecem ter alguma semelhança. Ela se esvai quando se observa que Jorge exige o estrito cumprimento das etapas do trabalho. Ainda que não menos séria, Cosme e Damião tem uma atmosfera mais lúdica, que inspira na Banda mais alegria. E aí, um dos nossos inovou: inventou uma paradinha num ponto dedicado aos Gêmeos:

Cosme e Damião, sua ca-sa-cheira/Cheira a cravo/Cheira a rosa/ E a botão de laranjeira

Nas Entregas do Trimestre, o trabalho acontece no Templo Exotérico. E aí as falanges se revezam conforme a necessidade. Oxóssi e Pretos Velhos acontece no Templo Exo da Sede, um local mais apertado que exige também mais resistência ao calor.

Todos eles, no entanto, têm aos músicos um ensinamento em comum: o canto e a música devem ressoar em um sentido harmônico, porque a Bandinha dita o ritmo do trabalho.

A vida seguia o seu curso e exigia que aos poucos eu me desvencilhasse da adolescência. Dia desses, Iluminado Ogum Megê testava a nossa incorporação. Parecia tratar-se da depuração da nossa capacidade mediúnica. Todos, ainda muito inseguros, não enxergavam bem a diferença entre as próprias ações e o Guia. E ele nos pedia para concentrar no Uno Mediúnico, que nos ajudaria a enxergar melhor aquela situação. Fui percebendo que o medo excessivo era um obstáculo ao Guia, e o processo foi ficando mais natural. Mal percebia que começava aí um momento de ruptura. E numa Oração Dominical, eu permitia que um Guia se deixasse identificar por mim: Ogum Iara.

Aos vinte anos veio o primeiro baque: eu e mais dois colegas nos tornaríamos Dirigentes de Trimestre. Num gesto que pareceu orquestrado, era o fim da nossa meninice da banda. Passaríamos a integrar a Auréola. Tratava-se de um segundo rito de passagem. Assim como a primeira comunhão celebrava o fim da infância, essa transição simbolizava a abertura das portas para a maturidade.

A fronteira definitiva começava a ser ultrapassada em um 27 de agosto de 2002. Mestre Krishna convidou a mim e a Celia Brito, minha colega daquela comunhão de 1988 – não, não é a moça por quem me apaixonei. Esta já havia muito saíra da Irmandade. E então, o dia de Cosme e Damião me via selar a infância e a adolescência num passado cheio de recordações. E me introduzia no que deveria ser a maturidade espiritual.

Um comentário:

  1. Um grande abraço fraterno para você Felipe Rangel, meu nome é Hilton Jorge Araújo, estou afastado da Irmandade, têm alguns anos, mas não deixei de congregar os ensinamentos da mesma todos os dias, sou uma pessoa espirita Umbadista convicto.
    Felipe gostei muito da sua publicação e, do assunto disertado na formação tanto da oração dominical e da Mocidade IEED.
    Saudações fraternas ao Irmão Felipe Rangel

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